Questão de análise relativamente recente no Direito do Trabalho é a figura do assédio moral que, praticado em diversas áreas do relacionamento humano, ganha maior preocupação e proteção dentro da esfera trabalhista.
Para melhor adentrarmos no objeto deste artigo, iniciemos com a apresentação de alguns conceitos do fenômeno sob reflexão:
“Toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu trabalho ou degradar o ambiente de trabalho.”( Marie-France Hirigoyen, na obra Assédio Moral – a violência perversa do cotidiano)
“Assédio Moral é a deliberada degradação das condições de trabalho através do estabelecimento de comunicações não éticas (abusiva) que se caracterizam pela repetição por longo tempo de duração de um comportamento hostil que um superior ou colega(s) desenvolve(m) contra um indivíduo que apresenta, como reação, um quadro de miséria física, psicológica e social duradoura” (Heinz Leymann).
Embora o assédio possa produzir-se de diversas formas (exógeno, endógeno, ascendente, descendente, misto, etc.), de base desses dois conceitos, surgem alguns elementos bastante claros à definição do assédio moral, qual seja a produção de conduta abusiva, que atinge o mundo dos fatos com comportamentos, palavras, gestos, criada de forma deliberada e que se perpetuam no tempo.
Ou seja, estaremos diante de relacionamentos perversos, em que um ou mais dos interlocutores produz atos, concretos e sucessivos, sem que para isso haja qualquer fundamento idôneo, ou no linguajar criminal, excludentes de culpa ou ilicitude.
E não se espere para a configuração da hipótese de assédio a realização de agressões de grande monta ou publicidade, pois como esclarecem Patrícia Piovesan e Paulo César Rodrigues, apud Darcanchy (2006), “são micro-agressões, pouco graves se tomadas isoladamente, mas que, por serem sistemáticas, tornam-se destrutivas”, implementadas de inúmeras maneiras, como expor o trabalhador a brincadeiras vexatória, realizar repreensões excessivas e públicas, atribuir apelidos ou termos pejorativos, etc.
Porém, dentre os estudiosos de diversas áreas do saber e aplicadores do direito há uma divergência quanto a exigência da ocorrência do dano à dignidade ou integridade física ou psíquica para efetiva configuração do assédio moral.
Em que pese as ilustres e respeitadas posições em contrário, entendo que a comprovação objetiva do dano encontra-se em uma esfera de análise próxima, mas diversa e posterior à configuração do assédio.
Explico-me melhor.
Nos relacionamentos interpessoais, mais especificamente no âmbito trabalhista, dois bens precisam ser identificados e tutelados isoladamente, por mais imbricados que estejam e, por isso mesmo, de laboriosa distinção.
O primeiro deles é o direito ao estabelecimento de relações interpessoais saudáveis, respeitosas, fraternas. E para fins de substrato jurídico de exigibilidade trago à tona a Declaração Internacional dos Direitos Humanos que fixa, em seu artigo 1º, que “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”.
A declaração em comento trata-se de instrumento internacional fruto de histórica luta de classes e elaborado após inúmeros estudos multidisciplinares a apontar o artigo comentado, enquanto primeiro do corpo, base de fundação de todos os demais, restando claro o interesse no seu reconhecimento enquanto direito juridicamente tutelável para proteção da integridade de todo ser humano.
Embora de conceituação abstrata, o elemento FRATERNIDADE é cada vez mais pungente na ordem social e, como tal, precisa ser defendida pelo sistema estatal.
Tratando do direito ao trabalho, ou seja, de acesso do indivíduo ao posto de emprego, José Felipe Ledur ruboriza a necessidade de um trabalho decente para o alcance da plenitude da dignidade do ser humano:
“Importa salientar, desde logo, a conexão que há, do ponto de vista constitucional, entre o princípio fundamental da dignidade humana e a regra que assegura o direito ao trabalho. Como já frisado com a insistência, o art. 1º, III, da Constituição inclui a dignidade da pessoa humana entre os fundamentos da República Federativa do Brasil. Já o art. 170, caput, da Constituição deixa claro que a existência digna está intimamente relacionada ao princípio da valorização do trabalho humano.
O confronto entre ambas as normas evidencia que a dignidade da pessoa humana é inalcançável quando o trabalho humano não merecer a valorização adequada. Disso deriva a conclusão que a própria organização republicana estará em xeque se um dos fundamentos – a dignidade da pessoa humana – restar comprometido. (...) A vinculação estrita da dignidade com as liberdades públicas, especialmente em sua vertente negativa, é insuficiente. A propósito, destaca R. Alexy que ‘la liberdad negativa es una condición necessaria pero no suficiente de la dignidad humana”
O trabalhador tem o direito não só à IGUALDADE de tratamento em relação aos demais funcionários, mas especialmente a um ambiente de trabalho em que possa desenvolver suas capacidades em circunstância respeitosa, de modo a interagir, e neste conceito, ser doador e recebedor de estímulos.
Já o segundo Bem envolvido na questão em análise é a integridade física e psíquica do trabalhador que, acaso atingida, resultará no já conhecido dano moral, que por sua vez também merece tratamento especial neste trabalho.
Neste ponto cabe fazer a advertência enquanto operador do Direito, que a verificação dos fatos pela legislação correspondente deve, antes de mais nada, observar os parâmetros sociais que o Estado definira em sua origem. Juridicamente falando, observemos primordialmente os preceitos constitucionais atinentes à espécie.
O art. 1º da CF/88 aponta entre seus FUNDAMENTOS da República Federativa a dignidade da pessoa humana. Em seu art. 2º, indica como OBJETIVO promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por fim, no seu art. 5º, X, garante aos brasileiros a inviolabilidade à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Por danos morais e suas configurações apresentemos conceitos de doutrinadores conhecidos em nossa literatura civilista – e colhidos do texto “Dano Moral e sua Liquidação” de Ricardo Gariba Silva – que, por óbvio, serve de parâmetro para o reconhecimento do bem em questão:
“Danos morais são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico. Jamais afetam o patrimônio material, como o salienta Demogue. E para que facilmente os reconheçamos, basta que se atente, não para o bem sobre que incidiram, mas, sobretudo, para a natureza do prejuízo final.
Seu elemento característico é a dor, tomado o termo em seu sentido amplo, abrangendo tanto os sofrimentos meramente físicos, quanto os morais propriamente ditos. Danos morais, pois, seriam, exemplificadamente, os decorrentes das ofensas à honra, ao decoro, à paz interior de cada qual, às crenças íntimas, aos sentimentos afetivos de qualquer espécie, à liberdade, à vida, à integridade corporal.” (SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 3a. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 1.).
Nessa mesma linha de raciocínio:
“Os danos morais podem ser das mais variadas espécies. Os principais citados pela doutrina, são os que trazem prejuízo: à reputação, à integridade física, como o dano estético, ao direito moral do autor, ao direito de uma pessoa ao nome, às convicções de alguém, às pessoas que a vítima do dano tem afeto, como por exemplo a morte de um filho, à integridade da inteligência, à segurança e tranqüilidade, à honra, ao cônjuge por aquele que ocasionou o divórcio, à liberdade, aos sentimentos afetivos de qualquer espécie, ao crédito, etc.” (MAGALHÃES, T. A. L. deop. cit., pág. 6).
Dessas digressões, ruborizo para a necessidade de percebermos a efetiva distinção dos bens jurídicos atingidos pela prática do assédio moral, até mesmo para fins de eventual ingresso de ações judiciais, quais sejam, o direito ao relacionamento fraterno no ambiente de trabalho bem como à sua integridade física e mental.
A cumulatividade de agressões, por óbvio, eleva o patamar indenizatório, porém a percepção de fatores pessoais ligados à vítima – tais como capacidade excepcional de lidar com ambientes hostis – não pode eximir o agente das retaliações judiciais adequadas. Nesta hipóteses permanece a responsabilidade objetiva pelo descumprimento do dever de garantir um qualificado e fraterno ambiente de trabalho.
Assim encerro o presente texto sem qualquer pretensão exauriente da matéria, mas com a convicção da urgente necessidade de estimular-se a compreensão do trabalhador além da força laboral que possa compreender, mas na inteireza do ser humano que representa.
Sobre o autor:
Carlos Eduardo E. B. dos Santos
Juiz do Trabalho TRT|MA;
Especialista em Direito Processual pela ESAPI/UFPI;
Professor universitário.
Via SINPOCI
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