A filha de Antônia Edilene foi vítima do ex-namorado da mãe. A mulher foi condenada mesmo sem que testemunhas que asseguravam a inocência dela fossem ouvidas.
No último mês de agosto, a auxiliar administrativa Antônia Edilene saiu da prisão após dois anos e sete meses reclusa, condenada por um crime que não cometeu: omitir o estupro da própria filha, ocorrido em 2012, em Fortaleza.
O estupro foi cometido pelo então namorado de Edilene, quando a filha tinha 12 anos de idade. “Ele se aproveitou muito da minha confiança que eu dei a ele. E da minha ausência. Trabalhava muito, saía de casa às 5 da manhã, chegava às 7 da noite. Quando eu chegava, meus filhos estavam todos dentro de casa. Só que eu chegava cansada. Não tinha tanto acompanhamento. O meu erro foi esse”.
Os abusos só foram descobertos quando a filha, que prefere não se identificar, foi fazer uma visita ao pai, separado da mãe. Ela contou ao pai, que foi até Edilene, afirmando que havia feito uma denúncia contra o homem que abusou da adolescente.
“Quando eu soube, assim, o chão sumiu dos meus pés. Desmoronou tudo na minha cabeça. Minha reação foi procurar o monstro, o covarde, o qual fez esse ato comigo, com minha filha. Fui lá, fui procurar a defesa cabível para ela”.
Ela conta que foi imediatamente ao bar onde o ex-namorado trabalhava, gritando e chegando a agredi-lo, o que fez com que algumas pessoas presentes a segurassem.
Na época, Edilene prestou depoimento e foi liberada. Apenas o abusador foi denunciado.
Luta para anular condenação
A partir de então, a filha vítima dos abusos, já maior de idade, iniciou a luta para inocentar a mãe.
“Eu cheguei ver a gravação, do meu depoimento. Não tinha nenhuma palavra sequer botando culpa na minha mãe, em nenhum momento. Então eu queria saber o motivo da prisão dela, porque ela não teve culpa de nada. Ela Foi presa injustamente”, conta a jovem.
Ela recorreu à Defensoria Pública do Ceará em busca de ajuda. Lá, encontrou com o defensor público Emerson Castelo Branco. “Fui procurado por essa jovem porque ela estava desesperada com a prisão injusta da mãe”.
Ao analisar o caso, Emerson percebeu que o caso já havia transitado em julgado, ou seja, finalizado e com pena definitiva. “Por incrível que pareça, o mais absurdo é isso: nunca ninguém culpou essa mulher. Nunca teve uma frase de ninguém nesse processo dizendo: ‘ela simplesmente sabia. Ela tinha conhecimento do que acontecia com a filha dela’. Não tinha nada”.
A orientação foi para que a filha escrevesse uma carta para o Innocence Project (Projeto Inocência), organização internacional que, no Brasil, já libertou da prisão nove vítimas de erros da Justiça.
O Projeto Inocência só aceita casos com decisão condenatória definitiva, sem mais recursos, e faz uma intensa investigação antes de entrar em uma história.
“Nós analisamos o caso e identificamos que não havia fundamento para a condenação que ela sofreu. E de fato, os argumentos que levaram à condenação dela, as provas, nos pareceram muito fracas. A gente fez uma investigação, chamada de investigação defensiva. Que é uma investigação feita pelo Innocence Project, por mim, e pela Defensoria Pública, na pessoa do Emerson, em que conseguimos produzir novas provas que confirmavam a inocência da dona Antônia Edilene”, explica Flávia Rahal, diretora do Innocence Project Brasil.
“Ela foi colocada num grau de acusação, como se ela tivesse cometido um crime tão torpe quanto do próprio abusador da filha dela. E o que a gente demonstrou, e a prova nova comprovou de forma absolutamente categórica, não foi que ela denunciou, mas que assim que ela tomou conhecimento que um abuso tinha acontecido, ela tomou as medidas que estavam ao alcance dela para fazer cessar esse abuso. Então, ela não se omitiu. Ela agiu. E foi em virtude da ação dela que nunca mais o abusador chegou perto da filha dela”, complementa Flávia Rahal.
A procura de provas se baseou principalmente na descoberta de novas testemunhas do que aconteceu em 2012. Quem avisou Edilene sobre os abusos foi o pai da menina, eles já eram separados. Assim que foi avisada, Edilene desabafou com uma vizinha.
“Eu tenho uma testemunha ocular que viu o drama, o desespero, que foi a primeira pessoa que tomou conhecimento e nunca foi ouvida? Nós fomos atrás dessa testemunha”, conta Emerson Castelo Branco.
Uma outra testemunha foi crucial para comprovar a inocência de Edilene. Ao refazer os passos dos acontecimentos de 10 anos antes, o defensor público retornou ao bar onde houve o confronto entre Edilene e o abusador. Lá, ele começou a busca pelo homem que teria impedido que a mulher agredisse fisicamente o ex-namorado.
“Até que depois de muita luta conseguimos finalmente encontrar. Não foi nem o nome do homem, foi o apelido do homem. Quem segurou ela há 10 anos, depois de muita luta, foi um sujeito chamado Manchinha. E nós fomos atrás, então, de descobrir quem era”.
O depoimento do pedreiro Joserlânio Rodrigues, o Manchinha, foi a prova final para que o Projeto Inocência pedisse novo julgamento. Até então, ele nunca tinha sido ouvido pela Justiça no processo que levou à prisão de Edilene.
“Ela estava batendo nele e estava ficando mais agressiva e tal, e nós chegamos até a porta, conversamos com os dois e ela saiu. E aí parou por aí o assunto. Ela saiu muito nervosa e todos xingando e brigando com ele. Eu lhe confesso que foi até uma surpresa, porque eu também não estava sabendo que tinha sido assim tão, tão importante o meu testemunho. Eu fico feliz por ter ajudado”.
Edilene foi solta em agosto de 2024, depois de dois anos e sete meses na prisão. No dia 30 de setembro, os 14 desembargadores do Tribunal de Justiça do Ceará reverteram, por unanimidade, a condenação.
Sobre a prisão de Edilene, o Tribunal de Justiça do Ceará disse que, citada em 2015, Edilene apresentou resposta à acusação por meio da Defensoria Pública, que indicou testemunhas, e que nenhuma testemunha apresentada foi negada pelo tribunal.
O agressor da filha foi preso em 2022 no Rio de Janeiro.
Inocentada e fora da prisão, Edilene conta que vai entrar com pedido de indenização pelo tempo que passou reclusa.
“Eu tive muitas perdas e danos morais. Éuma coisa que não vai voltar nada do que você perdeu. Mas, pelo menos ser ressarcida pelo tempo que eu perdi lá dentro. Mas, a Justiça merece, sim, que eu entre com essa ação, porque foi uma injustiça o que fizeram comigo. Foi um caso que não estudaram direito”, conclui.
Fonte: G1
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